Autor: Swami Prajnatmananda
Publicado em 03/12/2022
Este artigo é a transcrição de uma palestra ministrada pelo Swami Prajnatmananda
A mitologia hindu tenta explicar certos fenômenos sutis relacionados ao nascimento, morte, cosmologia, etc. através de histórias. Gostaria de lembrar que essas histórias podem não ter nenhum fundamento histórico, mas os princípios morais nelas encontrados são eternos. De acordo com a mitologia hindu, Yama foi o primeiro homem a morrer. Ele foi para o céu e se tornou o governador de todas as almas que partiram, Pitrus—o deus dos mortos ou o deus da morte. Yama é o muito temido governante do tempo, Kāla, e retidão, Dharma. É por isso que ele é chamado de deus da retidão, Dharmaraja. Ele também é o mestre do autoconhecimento; é muito puro, santo, casto e bom. Isso é o que seu nome 'Yama' implica. Yama também é compassivo com todos aqueles que estão lutando no caminho da verdade.
De acordo com a crença hindu, a alma que partiu não espera até o dia do julgamento. Haverá destinação instantânea, com base nas boas ou más ações, karma, do indivíduo. Após a morte, antes de ir para qualquer outro plano de existência, todo ser tem que encontrar Yama. A alma individual é enviada para a esfera superior ou inferior de existência pelo deus da morte. Ele mantém registro de todas as suas ações boas e más. Yama também decide o tempo de vida das entidades vivas e os resultados de suas atividades baseados nas diferenças de ações, karmatāratamya. Nesse sentido, Yama é imparcial. Em cada corpo, existe uma entidade divina que não morre depois que o corpo é destruído. A entidade viva ou a alma é chamado no literaturas védicas como a centelha divina, jyōti, alma individual, jīva, etc.
Gostaria de narrar algumas anedotas encontradas na mitologia sobre Yama. Yama é considerado o filho do Deus-sol. Uma vez, Yama pediu a seus assistentes que tirassem a vida de uma pessoa chamada Sarmi e a trouxessem até ele. Eles tiraram a vida de uma pessoa errada com o mesmo nome Sarmi e a trouxeram para Yama. Ele se levantou ao ver a pessoa errada e pediu desculpas pelo engano de seus assistentes. E então, ordenou que o levassem de volta à terra com as devidas honras e o colocassem onde estava. Sarmi concordou em voltar para a terra, desde que ele recebesse algum conhecimento especial para o benefício dos seres humanos. Yama disse a ele que a caridade para as pessoas certas traz o maior mérito. Ofertas feitas até mesmo em nome dos espíritos que partiram trazem benefícios, tanto para o doador quanto para os que partiram. Sarmi voltou à terra e espalhou esta mensagem recebida de Yama sobre os bons resultados da caridade.
Agora vamos a outra narrativa relacionada ao Deus da morte, Yama: a princesa Savitri era filha única do rei Ashvapati. Ela foi dada em casamento ao príncipe Satyavan, filho do rei Dyumatsena. Savitri era muito piedosa e totalmente dedicada ao marido. O pai do príncipe Satyavan, Dyumatsena, perdeu seu reino por engano e teve que se abrigar em uma floresta com toda a família. Devido à idade, ele também perdeu a visão. Satyavan teve a vida abreviada pelo destino. Por meio de sua pureza, Savitri conheceu o momento exato da morte de seu marido. O próprio Satyavan não estava ciente disso. No dia fatal, ela seguiu o marido até a floresta para coletar lenha. Quando o momento da morte se aproximava, Satyavan sentiu-se inquieto e descansou no colo dela sob uma árvore. Os assistentes de Yama não puderam se aproximar de Satyavan, porque ele estava sendo protegido por Savitri. Então, o próprio Yama teve que vir para levar a alma de Satyavan ao reino dos mortos. Após a morte de seu marido, em virtude de sua pureza, Savitri seguiu Yama até o reino dos mortos. Para dissuadi-la de segui-lo, Yama ofereceu-lhe três bênçãos, exceto a vida de seu marido.
Como primeira benção, ela pediu a restauração da visão do Rei Dyumatsena, o pai de Satyavan. Em segundo lugar, ela pediu que seu reino perdido fôsse restaurado para ele, o que Yama concedeu de bom grado. Para sua terceira bênção, ela pediu que seu pai, Ashvapati, seja abençoado com filhos para continuar sua linhagem familiar. Yama também concedeu esse benefício. Mas Savitri ainda se recusou a deixar seu marido e continuou a seguir Yama.
Satisfeito com seu amor e devoção por seu marido, Yama concedeu a ela um quarto benefício. Para sua quarta bênção, ela pediu para ser abençoada com muitos filhos de Satyavan, com o que Yama concordou rapidamente. Todavia, ele percebeu que Savitri não podia ter filhos sem Satyavan, seu amado marido. Yama aceita então sua derrota e concedeu a ela a vida de Satyavan. Foi assim que Savitri conquistou o deus da morte. Através desta história, o poder de uma esposa casta e a natureza nobre do Yama são destacados.
Existe outra história interessante sobre Yama: um casal santo não tinha filhos. Eles adoravam intensamente o Deus Shiva, em busca de um filho. Shiva ficou satisfeito com sua adoração e apareceu diante deles. Ele queria dar a eles uma bênção, dando-lhes uma escolha: ou um filho virtuoso com uma vida curta, ou um filho de baixa inteligência, mas com uma vida longa. O casal escolheu como benefício um filho exemplar destinado a morrer apenas aos dezesseis anos. Ele se chamava Mārkandēya e era um grande devoto do Deus Shiva.
No dia de sua morte, Markandeya permaneceu absorto na meditação de grande Deus Shiva. Portanto os atendentes de Yama, o deus da morte, não puderam tirar sua vida. Então, o próprio Yama veio tirar a vida de Markandeya. Shiva emergiu em toda a sua fúria atacando Yama por tentar tirar a vida de seu devoto, Markandeya. Yama caiu aos pés do Shiva para se salvar. É por isso que Shiva é elogiado como "Mrutyunjaya" ou "Kālāntaka" - "O Matador da Morte". Vou recitar o mantra entoado por Markandeya. Este é chamado de "Grande Mantra Conquistador da Morte", Maha Mrutyunjaya Mantra.
ॐ त्र्य॑म्बकं यजामहे सु॒गन्धिं॑ पुष्टि॒वर्ध॑नम् । उ॒र्वा॒रु॒कमि॑व॒ बन्ध॑नात् मृ॒त्योर्मु॑क्षीय॒ माऽमृता॑त् ।। “Adoramos o Deus de três olhos Shiva, que é perfumado e nutre todos os seres. Que Ele me liberte da morte, pelo bem da Imortalidade, da mesma forma que um pepino é cortado da trepadeira”.
Foi assim que Markandeya conquistou o deus da morte, pela graça do Deus Shiva.
No grande épico do Mahabharata, encontramos cinco irmãos justos, os Pândavas, lutando contra cem irmãos perversos, os Kauravas. O mais velho dos cinco irmãos, Yudhishthira, nasceu com a bênção de Yama. Portanto, Yama sempre o impediu de seguir caminhos errados. Os outros quatro irmãos também nasceram com as bênçãos de deuses diferentes. Assim, como um todo, os cinco irmãos foram heróis invencíveis de sua época.
Como o destino queria, os irmãos Pândavas perderam seu reino e estavam no exílio vivendo em uma floresta. Eles sabiam que um dia teriam que enfrentar todos os cem irmãos perversos no campo de batalha. Naquela época, Yama decidiu testar a firmeza dos irmãos Pândavas em se apegar ao caminho reto. Um dia, um santo se aproximou de Yudhishtira, o irmão mais velho, e reclamou que um cervo havia levado nos seus chifres seu Ārani. Arani é um par de varas de madeira usadas para gerar fogo sacrificial. Na Índia, até hoje, esse método é usado para acender o fogo sacrificial. Como resultado, o homem santo não foi capaz de acender o fogo para a realização de rituais védicos. Os valorosos irmãos, Pândavas, partiram para recuperar o Arani, seguindo as marcas dos cascos do cervo.
Na busca pelo misterioso cervo, todos eles ficaram exaustos e com sede. Um dos cinco irmãos, Nakula, aventurou-se a buscar água e encontrou um lindo lago de águas cristalinas. Este estava desprovido de quaisquer criaturas vivas, exceto uma garça (Baka). Quando ele tentou tirar água do lago, a garça falou: "Ó Nakula ! A água deste lago se tornará veneno se você tomá-la sem responder satisfatoriamente às minhas perguntas". Nakula, com arrogância, não prestou atenção e bebeu, apressadamente, a água do lago. Ao bebê-la, Nakula morreu instantaneamente envenenado. Então, da mesma maneira, mais três irmãos, Sahadeva, Arjuna e Bhima morreram.
Já que nenhum dos irmãos voltara com água, Yudhishthira foi em busca deles, encontrando seus irmãos mortos à beira do lago. Antes de procurar o assassino, Yudhishthira decidiu beber um pouco da água do lago. Mas, quando a garça o avisou, ele percebeu que a ave tinha a resposta para os acontecimentos. O virtuoso Yudhishthira não bebeu daquela água. Ele exerceu controle sobre si mesmo e começou a responder às perguntas feitas pela garça. Antes de começar a fazer as perguntas, a ave se apresentou como um Yaksha, um deus luminoso. O Yaksha fez muitas perguntas com ramificações filosóficas e metafísicas. Este diálogo entre Yaksha e Yudhishthira é conhecido como a “Lenda da Garça Virtuosa”, “Dharma-Baka Upākhyāna”. Citarei apenas alguns trechos dessa conversa.
Pergunta: "Qual é a verdadeira natureza do Sol; e onde o Sol está estabelecido ?". Resposta: "A Verdade é o verdadeiro Sol e o Sol está estabelecido apenas na Verdade".
Pergunta: "Qual é a conduta adequada de uma pessoa não virtuosa ?". Resposta: “Criticar os outros é a conduta adequada a uma pessoa não virtuosa”.
Pergunta: “Qual é a conduta comum de uma pessoa não virtuosa ?". Resposta: "Abandonar pessoas sob proteção é conduta comum a uma pessoa não virtuosa”.
Pergunta: "O que é mais pesado que a terra, mais alto que o céu, mais rápido que o vento e mais numeroso que a grama?". Resposta: "A mãe é mais pesada que a terra, o pai é mais alto que o céu, a mente é mais rápida que o vento e nossas preocupações são mais numerosas que a grama".
Pergunta: "Quem é o amigo de um viajante ? Quem é o amigo de quem está doente e de quem está morrendo ?". Resposta: "O amigo do viajante é seu companheiro. O médico é o amigo do doente e o amigo do moribundo é a caridade realizada por ele".
Pergunta: "O que é aquilo que, quando renunciado, torna alguém amável ? O que é aquilo que é renunciado, torna alguém feliz e rico ?". Resposta: “O orgulho, se renunciado, torna alguém amável. Renunciando ao desejo, alguém se torna rico e renunciando à ganância, obtém-se a felicidade”.
Pergunta: “Qual é o inimigo invencível ? O que constitui uma doença incurável ? Que tipo de homem é nobre e que tipo de homem é ignóbil ?”. Resposta: “A raiva é o inimigo invencível. O ciúme constitui uma doença incurável. É nobre quem deseja o bem-estar de todas as criaturas e é ignóbil quem não tem piedade”.
Pergunta: "Quem é verdadeiramente feliz ? Qual é a maior maravilha ? Qual é o caminho ? E quais são as notícias ?". Resposta: "Aquele que não tem dívidas é verdadeiramente feliz. Dia após dia inúmeras pessoas morrem. E ainda assim, aqueles que estão vivos desejam viver para sempre, pensando que nunca morrerão. Ó Senhor, o que poderia ser mais maravilhoso ? Argumentos não conduzem a nenhuma conclusão, portanto, esse é o único caminho, trilhado pelos sábios. Este mundo cheio de ignorância é como uma panela; o sol é o fogo, os dias e as noites são combustível. Os meses e as estações constituem a concha de madeira. O tempo é o cozinheiro que está cozinhando todas as criaturas naquela panela com auxílio deles. Esta é a notícia".
Yama ficou muito feliz com a conduta e as respostas de Yudhishthira e trouxe de volta à vida todos os irmãos mortos. Então, o que Yama disse àqueles irmãos permanece em nossas mentes para sempre. dharmo rakshati rakshitaha-- धर्मो रक्षति रक्षितः “Se você protege a retidão, Dharma, então esse mesmo Dharma, a retidão, irá protegê-lo”. A guerra inevitável entre Pândavas e Kauravas ocorreu, embora Sri Krishna, o próprio Deus, estivesse presente naquele momento. Sri Krishna, como o cocheiro, foi fundamental para matar todos os cem irmãos perversos, junto com seus comandados. Assim, as palavras de Yama pronunciadas perante Yudhishtira se tornaram realidade.
Então, Yudhishthira foi coroado como o rei. Trinta e seis anos se passaram desde que Yudhishthira havia recuperado seu império. Ele estava governando o reino de maneira justa. Então veio a ele a notícia de que Sri Krishna, o sábio, seu amigo, seu profeta, seu conselheiro, havia deixado seu corpo mortal. O rei e os outros irmãos, tomados de tristeza, declararam que era hora de eles também partirem. Então, eles se livraram do fardo da realeza, colocaram Parikshit, o neto de Arjuna, no trono, e se retiraram para o Himalaia, na Grande Jornada, Mahâ-prasthâna. Na Índia antiga, quando os homens envelheciam, eles desistiam de tudo. Quando um homem não queria mais viver, então ele ia para o Himalaia, sem comer ou beber e andava e pensava em Deus até que o corpo caísse. Assim, os cinco irmãos e sua esposa Draupadi, partiram em sua jornada.
No caminho, eles foram seguidos por um cachorro. Eles seguiram em frente e viraram seus pés cansados para o norte, onde o Himalaia eleva seus altos picos. Silenciosamente, eles caminharam na neve. Um após o outro, no frio e na neve, todos os quatro irmãos e Draupadi, caíram; mas inabalável, embora sozinho, o rei avançou. Olhando para trás, ele viu que o cão fiel ainda o seguia. Então o rei dos deuses, Indra desceu com a carruagem dos deuses.
Indra disse a Yudhishthira: "Suba nesta carruagem, ó mais nobre dos mortais. Só você tem o privilégio especial de entrar no céu sem mudar o corpo mortal". Mas isso, Yudhishthira não faria sem seus irmãos devotados e Draupadi. Então Indra explicou a ele que eles já haviam alcançado o céu antes dele. Então, Yudhishthira olhou em volta e disse ao cachorro que o estava seguindo: "Entre na carruagem, criança". Indra ficou horrorizado e gritou: "O quê ! O cachorro ? O cachorro não pode ser levado para o céu ! Grande Rei, você está louco ?". Yudhishthira disse: "Mas este cachorro tem sido meu companheiro dedicado através da neve e do gelo. Quando todos os meus irmãos e minha esposa morreram e me deixaram, ele apenas continuou a me seguir. Jamais abandonarei alguém que se refugiou em mim. Eu nunca vou me desviar da justiça; nem mesmo pelas alegrias do céu ou pela insistência de um deus". "Então Indra disse: "Sob uma condição, o cão pode ir para o céu. Você pode trocar o céu com ele". O rei disse: "Concordo, deixe o cachorro ir para o céu". Imediatamente, a cena mudou. O cachorro não era outro senão Yama Dharmaraja, o deus da morte e da Justiça. E Yama exclamou: "Veja, ó Rei, nenhum homem foi tão altruísta quanto tu, disposto a trocar o céu com um cachorrinho ! Consequentemente, regiões de felicidade imortal são tuas !”. Então Yudhishthira, com Indra, Dharmaraja e outros deuses, encontrou seus irmãos e Draupadi, que agora eram imortais desfrutando da bem-aventurança eterna.
Contei cinco histórias sobre Yama, deus da morte, encontradas na mitologia hindu. Em três das histórias, Yama sofreu uma derrota. Isso significa que ele teve que devolver as pessoas mortas de volta à terra com vida. Outras duas histórias se acham relacionadas ao episódio dos irmãos Pândavas, questionados por Yama no grande épico Mahabharata. Ele testou o senso de retidão de Yudhishthira, uma vez na forma de uma garça e em outra, como um cachorro.
Em um dos antigos Upanishads, Katha Upanishad, há menção de um menino chamado Nachiketa que por acaso conheceu o deus da morte, Yama. Ele fez perguntas a Yama, sobre a vida após a morte e Brahman Absoluto e obteve respostas.
Assim, no contexto indiano, o deus da morte, Yama, não é temido. Ele é respeitado e considerado subserviente ao Deus Supremo ou ao Brahman Supremo. Yama está pronto para aceitar sua derrota diante dos mortais, se essa for a vontade do Deus Supremo. As histórias mitológicas nos ensinam que, quem segue o caminho justo e pensa constantemente em Deus, não tem medo da morte. Os iogues também transcendem limitações causadas pela natureza através da meditação e alcançam a imortalidade. Aqueles que seguem o caminho do conhecimento também transcendem a morte e alcançam a imortalidade, contemplando e identificando-se constantemente com sua verdadeira alma, que é da natureza do Absoluto Existência-Conhecimento-Bem-aventurança – Satchidananda. Isto é referido como a conquista da morte. (O estudo deste Upanishad continua no próximo post) |